Existe algo dentro de nós que observa tudo em silêncio. Uma espécie de presença, muitas vezes esquecida, mas que continua ali, atenta, paciente, esperando o momento certo para nos lembrar de quem realmente somos. Esse algo, na psicologia profunda de Carl Gustav Jung1, é chamado de Self.
Mas calma. Antes que esse nome estranho assuste, vamos devagar. O Self não é uma coisa separada de você. Pelo contrário, é o centro da sua psique. É o que une todas as suas partes, suas luzes e sombras, suas verdades escondidas, seus desejos mais profundos. Se fosse para resumir em uma imagem simples, o Self seria como o sol: está sempre lá, mesmo quando você não o vê, mesmo quando está coberto pelas nuvens da confusão ou da dor.
Na teoria dos arquétipos de Jung, o Self é o arquétipo da totalidade. Isso quer dizer que ele representa o nosso eu mais profundo, inteiro, aquele que já sabe quem somos, mesmo quando a gente ainda está se descobrindo. Enquanto o ego é a parte da nossa consciência que lida com o dia a dia, nossas decisões, nossos medos, nossas máscaras, o Self é o que está por trás de tudo isso, como uma bússola interna que aponta para o nosso verdadeiro norte.
A jornada em direção ao Self não é um caminho fácil. Pelo contrário. Muitas vezes ela começa quando a vida nos empurra para uma crise, uma perda, uma grande dúvida. Quando o velho jeito de viver já não serve mais, mas o novo ainda não apareceu. É nesse espaço de incerteza que o Self começa a se manifestar. E a gente sente, lá no fundo, que precisa voltar pra casa. Mas não uma casa feita de paredes e telhado e sim uma casa interior, onde mora a nossa essência.
Para entender melhor esse arquétipo, vamos olhar para uma história que quase todo mundo conhece: O Rei Leão. O desenho pode parecer simples, mas carrega uma simbologia profunda. Simba, o jovem leão, vive uma trajetória que é praticamente um mapa da jornada rumo ao Self.
Logo no começo, Simba é apresentado como o herdeiro do reino, ou seja, ele tem um papel, um lugar, uma identidade. Mas quando seu pai morre, numa cena que marca todo mundo, Simba se sente culpado e foge. Ele se desconecta de quem é. Vive uma vida leve, “Hakuna Matata”, sem preocupações. Parece feliz, mas no fundo está adormecido. Seu ego construiu uma defesa contra a dor: o esquecimento.
Mas o Self não se apaga. Ele continua chamando. E esse chamado vem, na história, na forma da figura de Rafiki, o velho sábio. Rafiki mostra a Simba o reflexo de seu pai, e mais do que isso, mostra o reflexo dele mesmo. “Você esqueceu quem você é”, diz Mufasa, em uma das falas mais marcantes do filme. Esse é o momento simbólico da reconexão. Simba vê o que havia negado, que ainda é, e sempre foi, o verdadeiro rei.
A partir daí, começa a parte mais difícil! Voltar. Retornar ao reino, encarar os traumas, os medos, os inimigos internos e externos. Essa volta não é só física, é a volta à sua identidade verdadeira. Simba, agora mais maduro, não é o mesmo que fugiu. Ele passou por um processo de transformação, típico da jornada rumo ao Self. Ele integra suas partes: o medo, a coragem, a culpa, o amor. E finalmente assume seu lugar no “ciclo da vida”.
Talvez você não tenha um tio Scar querendo tomar o seu trono. Mas, em algum momento da vida, todos nós passamos por situações que nos fazem duvidar de quem somos. Pode ser uma perda, uma ruptura, um vazio sem nome. E aí a gente se perde, ou melhor, o ego se perde. E começa a viver uma vida que não é exatamente nossa. A gente se adapta, finge, sobrevive.
Mas o Self continua ali. Silencioso, insistente, profundo. E de vez em quando ele sopra uma brisa estranha que bagunça tudo, como quem diz: “Ei, não esquece de mim”.
Reconectar-se com o Self é, portanto, um processo. Às vezes dói, às vezes assusta, mas também liberta. Não é sobre virar alguém novo, mas sobre lembrar de quem você sempre foi. O Self não pede perfeição, nem respostas rápidas. Ele só convida à escuta. E a partir dessa escuta, o caminho se revela, passo a passo, como Simba voltando ao reino, não para repetir o passado, mas para escrever uma nova história a partir da sua verdade.
No fim das contas, a busca pelo Self é a mais humana de todas as jornadas. E mesmo que o mundo tente nos distrair com mil vozes, ele continua lá, chamando pelo nosso nome verdadeiro. Você está ouvindo?
Paz e Luz.
1 – Carl Gustav Jung (1875–1961) foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço, fundador da psicologia analítica. Discípulo dissidente de Freud, Jung desenvolveu conceitos fundamentais como os arquétipos, o inconsciente coletivo e o processo de individuação. Sua abordagem valorizava os símbolos, os mitos e os sonhos como caminhos para compreender a psique humana em sua totalidade.