Cinderela é um daqueles contos que a gente pensa conhecer de cor, a borralheira que vira princesa, o baile, o sapatinho, mas que, quando olhado de perto, abre camadas de sentido sobre desejo, abandono, identidade e transformação. Na leitura psicanalítica, o que parece um enredo simples é, na verdade, uma narrativa que dá forma simbólica a conflitos internos e ao processo de crescimento psíquico.
No começo, Cinderela vive “entre as cinzas”, posição de invisibilidade, humilhação e trabalho doméstico. Psicologicamente, isso pode ser lido como um estado em que aspectos valiosos da personalidade, como a criatividade, desejo, qualidades afetivas, foram relegados à sombra. A transformação, que é mostrada na festa, no vestido, no encontro com o príncipe, representa a emergência dessas qualidades para a consciência. Um movimento de individuação1 e reconhecimento social. Essa leitura aproxima-se das interpretações junguianas2 que veem o conto como metáfora do desenvolvimento e da integração de funções psíquicas.
A figura da fada madrinha funciona psicologicamente como um reforço simbólico, uma intervenção que permite que a protagonista manifeste recursos internos que, previamente, estavam bloqueados. Em termos clínicos, esse “milagre” não é necessariamente externo, é a representação de um recurso psíquico que surge no momento em que a pessoa encontra coragem para se afirmar. Bruno Bettelheim, em sua leitura freudiana dos contos, argumenta que contos como Cinderela ajudam a criança, e o adulto, a organizar medos, fantasias e desejos de uma forma segura e simbólica, oferecendo soluções imaginárias para conflitos reais.
Os objetos do conto, como o sapatinho de cristal, o vestido, a abóbora que vira carruagem, não são meros adereços, cada um carrega significado. O sapatinho funciona como prova de identidade e seleção, só a que calça é reconhecida. O vestido simboliza a dupla identidade, a menina que servia e a mulher que pode ocupar outro lugar social. A abóbora e os animais transformados lembram a passagem de um estado para outro, o trânsito entre o mundo interno e o externo. Estudos comparativos mostram que, apesar das variações culturais, esses símbolos reaparecem em versões diversas do conto, reforçando seu papel arquetípico.
A madrasta e as irmãs representam, em chave psicológica, figuras de rejeição e rivalidade. O enredo encena de forma dramática aquilo que muitos vivenciam, sentimentos de exclusão dentro da própria família, ciúme e humilhação. A resolução do conto, passando por reconhecimento, casamento, saída do lugar humilhado, oferece uma reparação simbólica, o herói ou a heroína não apenas sobrevive às investidas familiares, mas é socialmente re-posicionado.
Embora o conto ofereça conforto, a ideia de que bondade será recompensada, ele também carrega ambivalências. A dependência de um salvador externo, representado pelo príncipe, pela fada, a ênfase no casamento como solução final e a romantização da paciência passiva. Leituras contemporâneas exploram tanto o valor terapêutico do conto quanto suas limitações à luz das transformações sociais sobre gênero e autonomia. A potência de Cinderela está justamente aí, ela continua funcionando como dispositivo simbólico que permite pensar mudanças íntimas num contexto social concreto.
Em consultório, é comum que pacientes se reconheçam em Cinderela, descrevendo-se em papéis subjugados, aguardando reconhecimento. Um caminho terapêutico produtivo é trabalhar essas imagens simbólicas, identificar quem é a “madrasta” interna, qual o “sapatinho” que prova a identidade genuína, e tornar consciente o processo de desejar, reivindicar e agir. Não se trata de criar finais mágicos, mas de promover a capacidade de a pessoa se ver como agente de sua própria transformação.
Cinderela é, acima de tudo, um mapa simbólico. Condensa em poucas cenas temas psicodinâmicos profundos, humilhação, desejo, reparação e o encontro com partes negligenciadas da psique. Lida com humanidade, onde oferece esperança sem apagar a dor. A leitura psicanalítica não desmonta o encanto, ao contrário, aprofunda-o, mostrando como esses contos continuam úteis para quem busca entender, e transformar, a própria vida.
Paz e Luz.
1 – Individuação: termo central na psicologia analítica de Carl Gustav Jung que designa o processo de desenvolvimento psicológico pelo qual uma pessoa se torna quem realmente é, integrando aspectos conscientes e inconscientes da personalidade para alcançar uma totalidade interior mais autêntica.
2 – Carl Gustav Jung (1875–1961) foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço, fundador da psicologia analítica. Discípulo dissidente de Freud, Jung desenvolveu conceitos fundamentais como os arquétipos, o inconsciente coletivo e o processo de individuação. Sua abordagem valorizava os símbolos, os mitos e os sonhos como caminhos para compreender a psique humana em sua totalidade.




