Começo com uma ideia simples: Tolerância não é um valor sem limite, é uma prática com fronteiras. Foi o filósofo Karl Popper1 quem colocou esse ponto com clareza em 1945, ao notar que “se estendermos tolerância ilimitada também àqueles que são intolerantes, seremos arruinados pela intolerância”, ou seja, a tolerância que aceita tudo acaba por se destruir.
Do ponto de vista psicanalítico, essa observação ganha contornos emocionais e relacionais. A tolerância é, antes de tudo, uma capacidade de conviver com o outro sem anular sua singularidade. Mas quando um indivíduo ou grupo pratica racismo, sexismo, homofobia, xenofobia, etarismo, preconceito religioso ou classismo, aquilo que aparece como “diferença” deixa de ser apenas diferente e passa a ameaçar a integridade e a segurança do outro. A tolerância, então, já não é um exercício de respeito, torna-se permissividade diante de agressão simbólica ou material.
Para entender por que certos preconceitos não podem ser tolerados, vale pensar em três movimentos psíquicos que costumam operar nessas situações:
Projeção: O sujeito projeta no outro traços indesejados como medo, insegurança, fracasso, entre outros, e os trata como uma ameaça. Racismo e xenofobia, por exemplo, frequentemente funcionam como defesa contra sentimentos próprios de impotência onde o “outro” vira bode expiatório.
Despersonificação: Reduzir o outro a um estereótipo, por exemplo ver a mulher apenas como objeto, o idoso como inútil, o imigrante como “invasor”, isso torna mais fácil atacar. Psicologicamente, ao desumanizar, o agressor corta empatia, e a ausência de empatia legitima violência.
Idealização autoritária: Quando uma ideologia se apresenta como solução total, ela organiza afetos em torno do ódio e da exclusão. Isso transforma opinião em ato, e o discurso intolerante em práticas que limitam direitos.
Na prática, tolerar discursos e ações que negam direitos é aceitar que a estrutura social permita a reprodução da dor. Por trás de nomes elegantes como “liberdade de expressão” pode haver uma máquina que produz sofrimento: exclusão no mercado de trabalho, agressões físicas, cerimônias de humilhação, políticas públicas que segregam, e esse ultimo exemplo está muito em alta no momento político atual com crimes de preconceito sendo defendidos como liberdade de expressão, sem a menor vergonha, deixando muito claro a falta de entendimento ou por questões de caráter mais questionáveis.
Organizações internacionais e estudos sobre direitos humanos mostram como a incitação ao ódio alimenta violência e exclusão, portanto, distinguir entre discurso livre e discurso que gera dano não é capricho, é proteção social, e demonstra um mínimo de coerência e humanidade.
Vamos a exemplos curtos e diretos:
Racismo: Quando a fala de alguém naturaliza a inferioridade de um grupo racial, isso não é apenas “ideia” ou “liberdade de expressão”, isso abre espaço para discriminação em escolas, trabalho e polícia. Tolerar esse discurso é tolerar práticas que ferem, literalmente, a vida.
Sexismo: Comentários que reduzem mulheres a papéis subalternos reforçam relações que justificam violência doméstica e desigualdade salarial. O resultado é um ambiente onde as mulheres perdem autonomia.
Homofobia: O ataque à identidade de uma pessoa não é só moralmente reprovável, corta amigos, emprego, acesso a serviços e, em muitos casos, pode levar ao suicídio. Tolerar isso é negligenciar vidas.
Xenofobia e classismo: Criar inimigos externos com imigrantes ou “os pobres”, facilita políticas que retiram direitos e infraestrutura básica, é a rota curta entre o discurso e a política opressora.
Etarismo: Marginalizar alguém por causa da idade, seja por considerá-lo “velho demais” ou “jovem demais”, reduz suas possibilidades de participação social, enfraquece sua autonomia e torna invisíveis necessidades importantes, como acesso adequado à saúde, oportunidades de trabalho e condições dignas de aposentadoria.
Preconceito religioso: Discriminar uma pessoa por sua fé ou prática espiritual limita sua liberdade de culto e sua expressão de identidade. Esse tipo de preconceito impede vivências plenas de cidadania e pode gerar exclusão, hostilidade e restrições injustas à participação comunitária.
A pergunta que Popper nos obriga a enfrentar é:
Quem decide onde traçar o limite?
A resposta psicanalítica e ética é dupla:
Primeiro o limite se funda na proteção da vida, da integridade e da igualdade;
Segundo as decisões devem ser públicas, racionais e sujeitas à crítica, não fruto de caprichos autoritários. Popper mesmo sugeriu que a defesa contra intolerância deve ocorrer dentro de regras que preservem o espaço de convivência aberta, usando argumentos e, quando necessário, medidas que impeçam a violência e a exclusão organizada.
Por mais duro que seja evidenciar isso, a prática de preconceito de alguém, além de todas as questões éticas envolvidas expõe claramente o declínio moral do preconceituoso.
Em suma a tolerância que não se protege deixa de existir. Defender uma sociedade plural não significa aceitar tudo que se diz, significa estabelecer limites claros contra ideias e práticas que negam a dignidade do outro. Do ponto de vista psicanalítico, isso é também cuidar do tecido emocional coletivo, não permitir que o ódio se naturalize é cuidar da possibilidade de viver juntos sem que uns destruam os outros.
Paz e Luz.
1 – Karl Popper foi um filósofo austríaco-britânico do século XX, conhecido por suas contribuições à epistemologia e à filosofia política. Defendeu a importância da crítica, do pensamento aberto e da ciência como processo de refutação, e formulou o conceito do “paradoxo da tolerância” ao discutir como sociedades livres podem se proteger de ideologias intolerantes.




