Há um tempo, compartilhei com vocês, nos textos abaixo, a experiência de doença extremamente complexa que tive que enfrentar e quase me levou a morte.
A experiência de cadeirante por um não cadeirante.
Encarando a morte de frente I.
Encare os problemas com bom humor (um relato pessoal).
Encarando a Morte de Frente II.
Foram meses intensos, um mergulho forçado em um lugar que, até então, eu só conhecia pela teoria: O submundo da própria existência.
O que me proponho a fazer hoje é um exercício de metanálise, uma forma de olhar para trás com as lentes da psicanálise e da simbologia, para entender o que, de fato, aconteceu. Não apenas no corpo, mas na alma. E, para isso, não há símbolos mais adequados do que Hades e Plutão.
Na mitologia grega, Hades é o deus do mundo invisível, o senhor do Hades, o reino dos mortos. Para os romanos, ele é Plutão, cujo nome, curiosamente, significa “o rico”, do grego Ploutos, riqueza. Essa dualidade é a chave para a nossa análise: O senhor da morte e o senhor da riqueza.
Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung1, o submundo, o reino de Hades, é a metáfora perfeita para o inconsciente profundo. É o lugar onde reside tudo o que reprimimos, as memórias dolorosas, os medos, mas também os tesouros escondidos, a riqueza (Plutão) do nosso potencial não vivido.
Quando a vida me apresentou a doença, não foi um convite, foi uma convocação. Uma queda vertical no abismo. Três cirurgias em vinte dias, um ano e sete meses de internação, um mês na UTI, quatro meses de isolamento, quatro vezes à beira do óbito. Perdi 60 quilos, toda a massa muscular, e tive que me alimentar por sonda. Meu corpo, antes um instrumento de ação no mundo, tornou-se uma prisão, um sarcófago temporário. Eu estava, literalmente, no reino de Hades.
O processo de doença, no meu caso, foi uma experiência arquetípica de morte e renascimento. A doença me despojou de tudo o que era superficial. A perda de peso extrema, a incapacidade de me mover, a dependência total de terceiros , cheguei a me locomover arrastando pelo chão, tudo isso simboliza a descida ao submundo, onde o ego é aniquilado e confrontado com a sua finitude.
Hades, como o invisível, é também o deus da transformação radical. Ele não negocia, ele exige a rendição. E a rendição veio na forma de uma infecção hospitalar que me manteve isolado por meses. O isolamento, o confinamento, é a própria essência do reino subterrâneo. É o momento em que somos forçados a olhar para dentro, sem as distrações do mundo exterior.
Lembro-me de ter minhas vísceras expostas por um período, após uma cirurgia que fechou por segunda intenção. Se há imagem mais visceral e crua da descida ao inferno pessoal, eu desconheço. É o corpo gritando a dor da alma, expondo a fragilidade da carne.
Mas é nesse lugar de máxima vulnerabilidade que reside a riqueza de Plutão.
Plutão, o rico, não é rico em ouro superficial, mas nos tesouros que só podem ser extraídos das profundezas da terra, ou, no nosso caso, do inconsciente.
Qual foi a riqueza que encontrei no meu submundo?
- A Ampliação da Empatia: Antes, a empatia era mais restrita ao consultório. Depois, a dor do processo me tornou mais permeável à dor e à superação de qualquer pessoa, real ou fictícia. A dor me conectou à humanidade de uma forma mais profunda.
- O Poder da Resiliência: A doença me obrigou a desenvolver uma resiliência que eu não sabia que possuía. A luta para sair da cama, usar a cadeira de rodas, o andador, largar a bengala, e hoje, conseguir voltar a correr, é a jornada do herói que retorna do submundo com um novo poder.
- O Bom Humor como Ouro: O bom humor, que usei como ferramenta para aliviar o peso da situação para mim e para os que me amavam, foi o meu tesouro. Rir de mim mesmo, das situações absurdas, como ser chamado de assombração ao me arrastar no escuro, foi a forma de transformar a energia densa de Hades em algo leve e vital. É a alquimia da alma.
O processo de doença foi, em essência, uma iniciação plutoniana. Fui forçado a morrer para o meu “eu” anterior, o que não temia a morte, mas não conhecia a dor da finitude, para renascer com uma nova perspectiva.
O Hades que me engoliu me devolveu como Plutão: Mais rico em humanidade, mais forte em espírito e com uma clareza renovada sobre o que realmente importa. A transformação não veio de fora, mas das profundezas, do lugar mais escuro e temido.
A vida, meus amigos, é um constante ir e vir do submundo. E a maior lição que Hades e Plutão nos ensinam é que a verdadeira riqueza está na capacidade de enfrentar a nossa própria escuridão e voltar à luz, transformados.
Paz e Luz.
1 – Carl Gustav Jung (1875-1961): Psiquiatra suíço e fundador da Psicologia Analítica. Jung expandiu a compreensão do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos e o inconsciente coletivo, e enfatizou a importância dos símbolos e da jornada individual de autoconhecimento.




