Arquétipos: A SombraAproximadamente 4 min. de leitura

Leia o artigo

Talvez você já tenha ouvido essa expressão: “Ele não é assim, deve estar com alguma coisa entalada.” Pois bem, muitas vezes o que está entalado é justamente aquilo que não conseguimos admitir em nós mesmos. Aquilo que negamos, reprimimos, escondemos até de nossos próprios olhos, é aí que mora o arquétipo da Sombra.

Na psicologia analítica de Jung1, os arquétipos são como moldes universais que habitam o inconsciente coletivo. São imagens primordiais que se expressam em mitos, sonhos, histórias…, e também nas nossas atitudes mais corriqueiras. A Sombra é um desses arquétipos, talvez o mais desconfortável, mas também um dos mais reveladores.

A Sombra é tudo aquilo que somos, mas que não queremos ser. É o lado oculto da personalidade, aquilo que aprendemos a rejeitar desde cedo porque nos disseram que era feio, errado ou perigoso. Raiva, inveja, desejo de poder, impulsos agressivos, fragilidade, vaidade, tudo isso, e mais um pouco, pode ser parte da nossa Sombra.

Mas engana-se quem pensa que a Sombra é só coisa ruim. Ela também guarda nossa vitalidade, criatividade reprimida, ousadia, potência de transformação. O problema não é tê-la, o problema é não reconhecê-la. Quando ignorada, ela escapa de maneiras tortas: nas explosões de raiva sem motivo aparente, nos julgamentos severos sobre os outros, nas sabotagens que fazemos conosco.

A Sombra se forma quando, ao longo da vida, vamos empurrando para debaixo do tapete tudo aquilo que “não combina” com a imagem que queremos sustentar. E quanto mais insistimos em parecer perfeitos, mais ela cresce no escuro, esperando o momento de se manifestar, às vezes em sonho, às vezes em um ato falho, às vezes num surto.

Ela não desaparece por negação, o inconsciente tem suas maneiras de se fazer ouvir. E quanto mais ignoramos a Sombra, mais reféns ficamos dela.

Jung1 dizia: “Aquilo que você resiste, persiste.” Integrar a Sombra é um processo de honestidade radical consigo mesmo. É olhar para o espelho e dizer: “Sim, isso também sou eu.”

Isso não significa sair por aí dando vazão a todos os impulsos sombrios, mas sim conhecê-los, escutá-los, entendê-los. Quando a Sombra é integrada, ela deixa de nos dominar pelas costas e passa a nos oferecer força. Quem a reconhece ganha mais liberdade, mais inteireza, mais humanidade.

Um exemplo marcante da Sombra em ação é a personagem Nina, interpretada por Natalie Portman no filme Cisne Negro. Nina é uma bailarina exemplar: disciplinada, delicada, esforçada até o limite. Ela representa a imagem perfeita da “boa menina”, aquela que agrada a todos, que busca a perfeição, que não deixa escapar nenhuma falha. Mas é justamente essa busca pela perfeição que a afasta de si mesma.

Ao ser escalada para interpretar o papel duplo do Cisne Branco e do Cisne Negro, Nina entra em conflito com algo que ela não conhece direito: seus próprios desejos, impulsos e sombras. Para dançar o Cisne Negro, ela precisa acessar aspectos seus que sempre foram reprimidos, sensualidade, agressividade, instinto, espontaneidade. E quanto mais tenta controlar tudo, mais esses aspectos ganham vida própria.

O filme é uma verdadeira viagem simbólica pelo processo de enfrentamento e também de destruição da Sombra. Nina começa a ter alucinações, se perde entre o que é real e o que é projeção. Sua Sombra toma forma, e o que vemos é uma jovem que nunca pôde ser inteira, que viveu dividida entre o que esperavam dela e o que ela realmente era. A Sombra de Nina explode porque nunca teve espaço para ser escutada.

Ela teme o fracasso, mas teme ainda mais o próprio desejo. O desejo de ser livre, de errar, de ser imperfeita. Esse desejo, por não ter sido acolhido, se volta contra ela. O final trágico do filme é também uma metáfora brutal de quando a Sombra não encontra uma via de integração, ela destrói de dentro para fora.

Todos temos uma Sombra. E quanto mais negamos sua existência, mais ela nos aprisiona. Reconhecer a Sombra é um gesto de coragem. É admitir que não somos só luz, e que está tudo bem assim. A Sombra não é o nossa inimiga, ela é parte do que somos. E quando conseguimos dialogar com ela, deixamos de viver em guerra interna.

Na vida real, não precisamos seguir o destino de Nina, podemos aprender com ela, podemos olhar com mais compaixão para nossos lados obscuros, nossos erros, nossas contradições, podemos transformar o que antes era medo em potência. E, quem sabe, ao dançarmos nossa própria dança, nos tornarmos um pouco mais inteiros.

Paz e luz.

 

1 – Carl Gustav Jung (1875–1961) foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço, fundador da psicologia analítica. Discípulo dissidente de Freud, Jung desenvolveu conceitos fundamentais como os arquétipos, o inconsciente coletivo e o processo de individuação. Sua abordagem valorizava os símbolos, os mitos e os sonhos como caminhos para compreender a psique humana em sua totalidade.

Autor

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *