Bebês Reborn: O que a psicanálise nos revela sobre esse fenômenoAproximadamente 5 min. de leitura

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Nos últimos meses, as redes sociais brasileiras foram tomadas por vídeos de adultos cuidando de bonecas hiper-realistas, conhecidas como bebês reborn. Esse fenômeno ganhou proporções inesperadas, gerando desde projetos de lei até disputas judiciais pela “guarda” e “pensão alimentícia” dessas bonecas.

Mas o que esse comportamento revela sobre nossa psique? 

Por que algumas pessoas desenvolvem vínculos tão profundos com esses objetos?

E por que isso causa tanto desconforto em quem observa?

A psicanálise nos ensina que nossos comportamentos raramente são aleatórios. No caso dos bebês reborn, estamos diante de um fenômeno que toca em aspectos fundamentais da experiência humana: o cuidado, a maternidade e nossa relação com a ausência.

Quando vemos adultos tratando bonecas como bebês reais, nossa primeira reação pode ser de estranhamento. Porém, esse comportamento é apenas uma manifestação mais visível de algo que todos fazemos: investir objetos com significados emocionais.

Desde a infância, aprendemos a transferir afetos para objetos externos – o ursinho de pelúcia que nos conforta, a foto que guardamos com carinho. 

Winnicott1 chamava esses primeiros objetos de “objetos transicionais”, pois ajudam a criança a lidar com a separação da mãe, criando um espaço intermediário entre o eu e o outro. Os bebês reborn podem funcionar, para alguns adultos, como uma forma elaborada desse mesmo mecanismo psíquico.

O que nos incomoda tanto?

Além de questões como levar essas bonecas ao médico, tomando o tempo e lugar de pessoas que estão doentes e na espera de atendimento, você já se perguntou por que a visão de um adulto embalando uma boneca realista causa tanto desconforto? Por que hobbies como colecionar miniaturas são socialmente aceitos, enquanto os bebês reborn provocam reações tão intensas?

Talvez porque eles toquem em algo que preferimos manter distante da consciência: nossa vulnerabilidade fundamental. As bonecas reborn borram a fronteira entre fantasia e realidade de uma forma que nos confronta com questões existenciais profundas.

Quando criticamos esse comportamento, muitas vezes estamos projetando nossos próprios medos. A projeção, mecanismo descrito por Freud2, é justamente isso: atribuir ao outro aspectos de nós mesmos que não queremos reconhecer. O incômodo com os bebês reborn pode revelar mais sobre quem critica do que sobre quem os coleciona.

Um aspecto interessante desse fenômeno é como ele se relaciona com a maternidade em nossa cultura. Vivemos em uma sociedade que simultaneamente idealiza e sobrecarrega as mães, enquanto oferecemos pouco suporte concreto para a maternidade real.

Os bebês reborn permitem viver uma maternidade idealizada, o bebê nunca chora inconsolavelmente, não adoece, não tem cólicas. É a fantasia da maternidade sem seus desafios reais.

Para algumas mulheres que sofreram perdas gestacionais, essas bonecas podem representar uma forma de elaborar o luto. Para outras, podem ser uma maneira de experimentar aspectos da maternidade sem os compromissos que ela implica na realidade.

A psicanálise nos ensina a não patologizar apressadamente comportamentos que não compreendemos. Antes de julgar, é importante perguntar: que função psíquica esse comportamento cumpre para essa pessoa específica?

Sintoma social ou expressão individual?

Quando um fenômeno ganha proporções tão grandes, precisamos questionar o que ele revela sobre nossa sociedade. O que a popularização dos bebês reborn nos diz sobre o momento que vivemos?

Talvez estejamos diante de um sintoma de uma sociedade cada vez mais virtual, onde as relações são mediadas por telas. Nesse contexto, o tátil ganha um valor especial. A boneca que se pode tocar representa um contraponto à digitalização da experiência humana.

Ou talvez seja uma resposta à solidão crescente, onde laços comunitários tradicionais se enfraquecem. A boneca reborn oferece uma forma de conexão emocional que não julga, não abandona, não decepciona.

Antes de concluir com julgamentos apressados, talvez seja mais produtivo usar esse fenômeno como um espelho para nossa própria relação com o cuidado, com a maternidade, com a fantasia e com a realidade.

Que aspectos de nós mesmos projetamos nessas bonecas? 

O que nos incomoda realmente? 

O que isso revela sobre nossos próprios medos e desejos inconscientes?

A psicanálise nos convida a essa postura de curiosidade diante do que parece estranho. Como dizia Freud, muitas vezes o que nos parece mais estranho é justamente aquilo que nos é mais familiar, mas que preferimos manter reprimido.

Os bebês reborn, com seu realismo inquietante, nos convidam a questionar as fronteiras entre o normal e o patológico, entre a fantasia e a realidade, entre o individual e o coletivo.

E você, o que sente quando vê alguém tratando uma boneca como um bebê real? A resposta a essa pergunta pode revelar muito mais sobre você do que sobre o fenômeno em si.

Paz e Luz

1 – Donald Woods Winnicott (1896-1971) foi um influente pediatra e psicanalista britânico que revolucionou nossa compreensão sobre o desenvolvimento infantil. Conhecido por conceitos como “objetos transicionais” e “mãe suficientemente boa”, Winnicott enfatizou a importância do ambiente e da relação mãe-bebê para o desenvolvimento emocional saudável. Sua abordagem humanista e acessível continua inspirando profissionais da saúde mental em todo o mundo.

2 – Sigmund Freud (1856-1939) foi o fundador da psicanálise e uma das figuras mais influentes do pensamento moderno. Médico austríaco, revolucionou nossa compreensão da mente humana ao propor a existência do inconsciente e desenvolver conceitos como repressão, transferência e projeção. Sua teoria sobre a estrutura da personalidade (id, ego e superego) e os estágios do desenvolvimento psicossexual transformaram profundamente a psicologia e influenciaram diversos campos do conhecimento, da arte à filosofia.

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