O que a filosofia e a psicanálise podem nos ensinar sobre encontrar a felicidade?Aproximadamente 5 min. de leitura

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Felicidade é uma palavra pequena que carrega muita confusão. Para a cultura popular, costuma vir embrulhada em promessas rápidas, tais como mais consumo, mais produtividade, mais resultados. Filosofia e psicanálise, no entanto, oferecem um convite distinto, não ao atalho, mas à atenção em examinar o que queremos, por que queremos, e que custo pagamos para chegar lá.

Comecemos pela filosofia antiga. Aristóteles nos lembra que “felicidade” não é mero prazer ou estado emocional passageiro, é uma vida boa, uma realização das capacidades humanas em consonância com a razão e a virtude, ou seja, um modo de ser que se constrói em atos e hábitos. Não é algo que se conquista com um clique, é prática, escolha e talento moral cultivado.

Epicuro1, por sua vez, desloca a conversa do excessivo para o mínimo necessário, felicidade passa pela ausência de dor e pela tranquilidade, prazeres simples, amizade, moderação, e não pela busca incessante por sensações intensas. Essa ênfase na medida nos protege contra o ciclo de “mais” que consome tempo e sentido.

A psicanálise complementa e complica essa visão. Freud2, em textos como “O Mal-estar na Civilização”, alerta que a vida em sociedade impõe limites aos nossos impulsos e que parte do sofrimento humano nasce dessa tensão, buscamos satisfação, a cultura pede renúncia, e a culpa ou a frustração aparecem como preço pago pela convivência. Isso não é pessimismo gratuito, é um diagnóstico que ajuda a entender por que muitas estratégias contemporâneas de “felicidade rápida” fracassam, elas ignoram conflitos internos e custos sociais.

Jung3 amplia o quadro com uma advertência e uma promessa: a felicidade, entendida como sentido e integridade, passa por tornar conscientes os conteúdos da nossa vida psíquica como sombras, imagens, sonhos, num processo que ele chamou de individuação4. Em vez de suprimir o que nos incomoda, a tarefa é reconhecer, integrar e transformar. Essa integração reduz repetições autodestrutivas e abre espaço para um sentido mais duradouro do que “estar bem”.

Lacan5, por outro lado, nos lembra de outra armadilha, onde desejamos objetos que prometem preencher um vazio que não pode ser preenchido, o que ele nomeou como objet petit, a “causa do desejo”. A busca por um objeto-mágico que nos realize tende a produzir frustração, porque o desejo se estrutura em torno de uma falta constitutiva. Em termos práticos, perseguir idealizações (o trabalho perfeito, a relação perfeita, o corpo perfeito) costuma gerar mais angústia do que bem-estar. Tomar consciência desse mecanismo já reduz seu poder.

O que tudo isso significa no dia a dia? Primeiro, que a felicidade existe em camadas: há uma camada prática, que consiste em habituar-se a ações saudáveis, cultivar amizades, outra ética, passando por viver coerentemente com valores, e outra profunda onde você vai lidar com desejos inconscientes, integrar partes rejeitadas de si. Segundo, que atalhos que prometem bem-estar imediato, como evitar dor a qualquer custo, consumir para preencher vazios, projetar a própria completude em outra pessoa, tendem a ser paliativos, funcionam por um tempo e depois voltam a falhar.

Na prática clínica e na vida cotidiana, algumas atitudes fáceis de entender e difíceis de manter mostram convergência entre filosofia e psicanálise. Cultivar práticas que estimulem a percepção de sentido, trabalhos que façam sentido, rituais simples, amizades, exercitar a moderação e a atenção, em resumo, treinar hábitos, e quando necessário, olhar para dentro com ajuda profissional para entender os padrões repetidos que sabotam. Terapia não é “conserto” imediato, é processo que deixa a pessoa menos refém de impulsos e de fantasias de completude.

Para quem quer começar agora, experimente reduzir uma busca por gratificação rápida, por exemplo, redes sociais ou consumo impulsivo, durante uma semana e observe o que fica exposto. Tédio, angústia, desejo? Essas sensações são pistas. Pergunte-se que necessidade real está por trás? Isso já é um exercício psicanalítico elementar e, ao mesmo tempo, uma prática estoica/epicureana de autocontrole e simplicidade.

Concluo com uma ideia simples e prática em que a felicidade vivida com profundidade não é um estado constante nem uma lista de tarefas, é uma forma de morar a própria vida, com escolhas que expressam quem se deseja ser, com atenção às feridas que repetem padrões, e com coragem para trocar promessas fáceis por um trabalho de longo prazo sobre si. Filosofia e psicanálise não prometem um manual de sucesso instantâneo, prometem clareza, princípios e ferramentas para que a vida valha a pena ser vivida por nós mesmos, não por imagens ou fórmulas prontas.

Paz e luz.

 

1 – Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.) foi um filósofo grego que fundou uma escola conhecida como “Jardim de Epicuro”. Defendia que a verdadeira felicidade nasce da busca por prazeres simples, da amizade, da moderação e da ausência de sofrimento físico e perturbações mentais (ataraxia), em contraste com a busca incessante por prazeres intensos ou bens materiais.

2 – Sigmund Freud (1856 – 1939) foi o fundador da psicanálise. Desenvolveu uma teoria inovadora sobre o funcionamento da mente humana, destacando o papel do inconsciente, dos desejos reprimidos e dos conflitos psíquicos na formação da personalidade e nos sintomas neuróticos. Suas ideias influenciaram profundamente a psicologia, a cultura e a compreensão moderna do sujeito.

3 – Carl Gustav Jung (1875-1961): Psiquiatra suíço e fundador da Psicologia Analítica. Jung expandiu a compreensão do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos e o inconsciente coletivo, e enfatizou a importância dos símbolos e da jornada individual de autoconhecimento

4 – Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, individuação é o processo de tornar-se quem se é de forma mais plena, integrando aspectos conscientes e inconscientes da personalidade. Em vez de eliminar os conflitos internos, busca-se reconhecê-los, dar-lhes forma simbólica e incorporá-los à identidade, promovendo um senso mais profundo de totalidade e sentido pessoal.

5 – Jacques Lacan (1901 – 1981) foi um psicanalista francês que reinterpretou as ideias de Freud à luz da linguística e da filosofia estruturalista. Defendeu que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e destacou o papel da falta e do desejo na constituição do sujeito. Sua obra influenciou profundamente a psicanálise contemporânea, a filosofia e as ciências humanas.

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