Imagine por um instante que a vida é um grande palco. Não um palco de teatro, mas o palco da convivência, do trabalho, da família, das redes sociais. E, como em qualquer peça, nós vestimos um figurino. Esse figurino, que é muito mais do que a roupa que escolhemos, é a Persona.
Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung1, a Persona é o arquétipo da adaptação. É a nossa “máscara social”, o rosto que apresentamos ao mundo para sermos aceitos, para cumprir papéis e, acima de tudo, para sobrevivermos em sociedade. Ela é a soma de tudo o que queremos parecer: o profissional competente, o pai ou mãe dedicado, o amigo espirituoso, o intelectual engajado, entre outros.
E aqui, é fundamental que fique claro, a Persona não é, em si, uma mentira. Ela é uma necessidade. Pense bem:
Você agiria da mesma forma numa reunião de diretoria e num churrasco de família?
Falaria com o mesmo tom e usaria as mesmas palavras com seu filho pequeno e com um juiz?
Claro que não. A Persona é essa ferramenta psíquica que nos permite transitar entre os diferentes mundos, ajustando nosso comportamento às expectativas e demandas de cada ambiente. Sem ela, seríamos como um motorista que tenta dirigir um carro de corrida na rua de um vilarejo, ou seja, inadequados e, provavelmente, perigosos.
O problema, como quase tudo na vida, não está na ferramenta, mas no uso que fazemos dela. O perigo começa quando nos identificamos excessivamente com a máscara. Jung chamou isso de inflação da Persona. É quando o ator se esquece de que é um ator e passa a acreditar que o personagem é sua identidade total.
Quantas vezes você já não viu ou viveu isso? O executivo que não consegue relaxar no fim de semana porque o papel de “homem de sucesso” exige uma performance constante. A mãe que se anula completamente em função do papel de “mãe perfeita”, perdendo o contato com seus próprios desejos e individualidade. O intelectual que só consegue se comunicar através de jargões complexos, incapaz de ter uma conversa simples e humana.
Nesses casos, a Persona, que deveria ser um traje flexível, torna-se uma armadura rígida. Ela nos protege, sim, mas também nos aprisiona. O preço desse processo é alto, perdemos o contato com o nosso Self, o centro da nossa totalidade psíquica, a semente do que realmente somos. E, ao perdermos o Self de vista, a vida começa a soar oca, vazia, mesmo que a máscara social esteja brilhando.
A inflação da Persona é uma das grandes geradoras de sofrimento psíquico na sociedade moderna. A pessoa vive para o olhar de fora, para o aplauso, para a validação externa. Mas, por dentro, sente uma profunda solidão e uma ansiedade que não cessa. É o medo constante de que a máscara caia e revele o que está por baixo, um ser humano comum, com falhas, medos e, principalmente, com uma Sombra2, outro arquétipo junguiano que guarda os aspectos de nós mesmos que reprimimos ou negamos.
O colapso da Persona é um momento de crise, mas também de profunda oportunidade. É quando a vida, ou o inconsciente, nos força a tirar a máscara. Pode vir na forma de um burnout, de uma depressão, de uma perda significativa ou de uma simples, mas avassaladora, pergunta: “Quem sou eu, de verdade, quando ninguém está olhando?”.
O objetivo da vida, segundo Jung, é o processo de Individuação, que é o caminho para nos tornarmos o ser único que realmente somos. E a individuação passa, necessariamente, pelo reconhecimento da Persona. Não se trata de jogá-la fora, o que seria ingênuo e socialmente inviável, mas de colocá-la no seu devido lugar.
Precisamos aprender a usar a máscara sem nos tornarmos a máscara. Isso exige um trabalho interno de honestidade brutal:
1 – Reconhecer a Máscara: Identificar os papéis que você cumpre e o que eles exigem.
2 – Conectar-se com o Self: Dar espaço para a sua essência, para o que você sente e deseja, mesmo que isso não se encaixe no seu papel social.
3 – Integrar a Sombra: Aceitar que você não é apenas o que a máscara mostra, mas também o que ela esconde.
A psicoterapia é, nesse sentido, um espaço seguro para esse desnudamento. É onde podemos, aos poucos, tirar a armadura e descobrir que o rosto por baixo dela não é feio ou fraco, mas apenas humano.
A Persona é um traje de gala para a festa da vida. Mas, quando a festa acaba, precisamos ter a coragem de voltar para casa e nos olhar no espelho sem pintura. Só assim deixamos de ser meros personagens para, enfim, sermos nós mesmos. E essa é a única performance que realmente vale a pena.
Paz e luz.
1 – Carl Gustav Jung (1875-1961): Psiquiatra suíço e fundador da Psicologia Analítica. Jung expandiu a compreensão do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos e o inconsciente coletivo, e enfatizou a importância dos símbolos e da jornada individual de autoconhecimento.
2 – Sombra: A teoria formulada por Carl Gustav Jung, descreve os aspectos da personalidade que a consciência rejeita ou reprime, impulsos, lembranças e traços que não se encaixam na imagem que temos de nós mesmos. Esses conteúdos, embora ocultos, continuam a influenciar pensamentos, emoções e comportamentos, surgindo muitas vezes em forma de projeções ou sintomas psíquicos, como a ansiedade. Integrar a sombra não significa “eliminar o negativo”, mas reconhecer e dar lugar a essas partes esquecidas, tornando-se mais inteiro e autêntico.




