Branca de Neve é, na superfície, uma história simples, uma menina de rara beleza, a inveja de uma madrasta, refúgio com sete anões e um envenenamento que parece condená-la, até que a redenção chega por meios inesperados. Mas, como todo conto de fadas que perdura, ela fala em símbolos, da rivalidade entre mulheres, da relação com a autoridade, do corpo como lugar de desejo e limite. A versão que conhecemos foi cristalizada pelos Irmãos Grimm1 no século XIX, reunindo elementos que aparecem em variantes europeias mais antigas.
Comecemos pelos personagens, eles não são apenas “quem faz o quê” na trama, são figuras internas da vida psíquica. A madrasta representa a voz crítica, o ideal superegoizado (Superego2) que mede valor pela aparência e pelo reconhecimento social. Sua pergunta ao espelho: “Quem é a mais bela?”, não é apenas vaidade, é uma busca por validação externa que explica sua raiva quando alguém (Branca) ocupa o lugar de aprovação que ela deseja. Branca, por sua vez, simboliza uma fusão de inocência e corpo desejável: Pele branca, lábios vermelhos, cabelos negros, imagens mitológicas do contraste entre vida e morte, presença e ausência.
Os sete anões funcionam como um microcosmo social e psíquico. No nível literal, são provedores de abrigo e limite, protegem a criança e impõem regras, como não abrir a porta. Simbolicamente, eles podem ser vistos como partes do self, forças laboriosas que mantêm uma vida doméstica, uma constelação de funções que sustentam a existência cotidiana. Alguns intérpretes leem os anões como a “comunidade interna” que aceita e conserva a beleza/fragilidade de Branca, mas que não consegue impedir a agressão externa, representada nesse conto como a madrasta.
A repetição das tentativas de matar, passando pela a ordem ao caçador, o pente envenenado, a maçã envenenada, fala de um impulso persecutório que insiste. Na leitura psicanalítica clássica, inspirada em Freud3 e expandida por autores posteriores, há aqui material sobre rivalidade edipiana4, desejo e medo de castração simbólica, a figura feminina que substitui a mãe biológica (a madrasta) e a jovem que encarna uma promessa de desejo para a comunidade são posições conflituosas.
O estado “morto-vivo” de Branca dentro do caixão de vidro é riquíssimo simbolicamente. Existe aí uma suspensão entre pulsões vitais e pulsões de morte, o que Jung5 chamaria de encontro com a sombra e o que Freud, mais tarde, teorizará como a presença do drive de morte. O caixão torna o corpo objeto de contemplação, preservado, admirado, transformado em troféu. Quando o príncipe aparece e “adquire” o corpo, abre-se uma leitura sobre possessão e a objetificação do feminino, a pessoa amada transformada em possesso simbólico. Alguns textos psicanalíticos contemporâneos destacam esse ponto, a salvação que reconstitui ordem social, mas também complexifica o tema do consentimento e da autonomia.
Na clínica, o que podemos retirar desse conto para pensar a experiência subjetiva?
Primeiro, a história dá nome para o que muitas pessoas vivenciam, ser alvejadas poela inveja, sentir-se trocada, precisar se refugiar.
Segundo, a trama mostra mecanismos psicológicos como idealização, rivalidade, proteção grupal, que aparecem em relações familiares e amorosas. Para dar Um exemplo prático posso citar pacientes que descrevem sentir “inveja” de alguém mais jovem ou mais reconhecido, às vezes reproduzem a cena da madrasta, medem seu próprio valor pelo espelho social, e isso ativa comportamentos autodestrutivos ou persecutórios. O trabalho terapêutico frequentemente propõe deslocar essa busca por validação externa para um reconhecimento interno mais estável.
Por fim, a moral não precisa ser simplista. A vitória de Branca não é apenas a punição da madrasta, mas a possibilidade de reintegração, do corpo que retorna à vida, da subjetividade que não se reduz ao veredito do espelho. O conto persiste porque dá forma simbólica a um dilema humano perene que consiste em como viver o desejo e a beleza sem transformá-los em campo de batalha. Lemos Branca de Neve quando queremos falar de inveja, perdas, redenções, e o fazemos com imagens que nos tocam direto, sem precisar de termos técnicos.
Branca de Neve nos coloca diante de figuras internas e externas de julgamento, desejo e proteção. A psicanálise não “decifra” o conto definitivamente, antes, oferece ferramentas para que cada leitor, criança ou adulto, reconheça nelas partes de si e possa transformá-las. E talvez por isso o conto continue a nos servir, não como receita, mas como espelho, um espelho que, desta vez, pode apontar para dentro, não apenas para fora.
Paz e luz.
1 – Os Irmãos Grimm, Jacob (1785–1863) e Wilhelm Grimm (1786–1859), foram estudiosos, linguistas e folcloristas alemães que se dedicaram a coletar e preservar contos da tradição popular europeia. Entre suas obras mais conhecidas estão Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel e Chapeuzinho Vermelho, reunidas em sua famosa coletânea Contos de Fadas para Crianças e Adultos, publicada no início do século XIX.
2 – Superego, na teoria de Freud, é a instância psíquica da personalidade responsável pela moralidade, internalizando os valores e regras da sociedade. Ele atua como um juiz interno, impondo limites e gerando sentimentos de culpa ou orgulho.
3 – Sigmund Freud (1856-1939) foi o fundador da psicanálise e uma das figuras mais influentes do pensamento moderno. Médico austríaco, revolucionou nossa compreensão da mente humana ao propor a existência do inconsciente e desenvolver conceitos como repressão, transferência e projeção. Sua teoria sobre a estrutura da personalidade (id, ego e superego) e os estágios do desenvolvimento psicossexual transformaram profundamente a psicologia e influenciaram diversos campos do conhecimento, da arte à filosofia.
4 – Edipiana refere-se ao Complexo de Édipo, uma teoria psicanalítica de Sigmund Freud sobre a fase do desenvolvimento infantil em que a criança sente atração pelo genitor do sexo oposto e rivalidade com o genitor do mesmo sexo. Essa dinâmica é descrita como fundamental para a constituição da identidade e inserção da criança no mundo, baseada no mito grego de Édipo, que descobriu ter matado o pai e se casado com a mãe.
5 – Carl Gustav Jung (1875–1961) foi médico psiquiatra suíço, fundador da Psicologia Analítica. Discípulo dissidente de Freud, propôs uma abordagem simbólica e profunda do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos, inconsciente coletivo, persona, sombra e processo de individuação. Jung enxergava a psique como um sistema dinâmico em busca de totalidade, articulando ciência, filosofia, religião e mitologia. Sua obra permanece central nos estudos da alma humana, influenciando não apenas a psicanálise, mas também a arte, a literatura e a espiritualidade contemporânea.




