Rapunzel é daquelas histórias que chegam com pouco e ficam pela vida inteira, uma menina de cabelos incomuns trancada numa torre, uma feiticeira que a guarda, e um príncipe que, atraído pelo canto, descobre seu refúgio. À primeira vista, parece um enredo simples sobre prisão e resgate, porém, quando olhamos pela lente psicanalítica, cada elemento se abre como símbolo. A torre, o cabelo, a separação, o encontro e a recuperação. Vou guiar você por esses símbolos em linguagem clara, conectando ideias psicanalíticas a imagens que o conto oferece.
Comecemos pela origem e pelo lugar do conto na tradição. A versão mais conhecida foi fixada pelos Irmãos Grimm1 em 1812, mas traz traços de histórias anteriores, como Persinette2 e Petrosinella3. Essa ancestralidade conta algo importante, os contos de fadas trabalham imagens arquetípicas que atravessam culturas, não são meras fábulas para distrair, mas estruturas simbólicas que dão forma aos dilemas humanos.
A torre funciona como prisão, proteção e espaço liminar. A torre onde Rapunzel vive não tem degraus nem portas, é ao mesmo tempo cárcere e proteção. Na psicanálise, isso tende a representar tanto a contenção parental quanto a separação necessária para o desenvolvimento da criança. A barreira protege, mas também impede o contacto com o mundo. Para muitos pacientes, a imagem da torre evoca a ambivalência entre o desejo de segurança e a necessidade de autonomia.
O cabelo como ponte e como sexualidade. O cabelo longo de Rapunzel funciona literalmente como uma escada para fora do aprisionamento, mas simbolicamente, é um recurso erótico e de ligação. Autores psicanalíticos clássicos e contemporâneos interpretam o cabelo como símbolo de energia libidinal e de identidade. Quando a feiticeira ordena que Rapunzel “baixe as tranças”, ela pede a manifestação desse laço, quando o cabelo é cortado, há uma perda de agência e uma tentativa de dominação sobre a sexualidade e a liberdade da jovem.
A figura da feiticeira/mãe possessiva. A mulher que prende Rapunzel pode ser lida como uma mãe possessiva ou como uma figura patriarcal de controle. Em leituras freudianas4 e bettelheimianas5, ela simboliza os limites impostos pelo outro significativo, que impede o sujeito de se lançar no mundo. A ambiguidade é chave, a “mãe” protege daquilo que o mundo representa como o perigo, perda, degradação, mas sua proteção, quando sufocante, torna-se prisão. Essa dinâmica ecoa em muitos processos terapêuticos, onde a superproteção impede o trabalho de separação.
O encontro com o príncipe introduz a ideia de desejo e de travessia. Não se trata apenas de “romance”, o príncipe representa o impulso à exteriorização, a possibilidade de sociabilidade e de reencontro com a própria potência do sujeito. A narrativa não evita sofrimento, há traição, corte do cabelo, cegueira do príncipe, e esses episódios funcionam como provações que obrigam a amadurecer.
Quando o príncipe fica cego ao cair entre espinhos, o castigo físico simboliza a perda do caminho, uma metáfora sobre como a desilusão nos deixa “às cegas”. O reencontro final, com a cura pelas lágrimas de Rapunzel, fala de reparação emocional. É uma cena de restituição, o afeto genuíno corrige a ferida. Psicoterapicamente, é um lembrete de que a cura envolve reconhecimento, presença e um trabalho afetivo que ressignifica o dano.
Mas como o conto conversa com a vida real?
Imagine um jovem que, por medo de desapontar pais, evita sair de uma carreira segura, ou alguém cujo parceiro impede relações sociais “para proteger”. Rapunzel nos dá imagens para entender esses padrões: A torre (resistência), o cabelo (meios de ligação) e o corte (ruptura traumática). Em terapia, evocamos histórias assim para traduzir o sofrimento em imagens compreensíveis e, por isso, os contos mantêm valor clínico.
Por que Rapunzel ainda importa?
Porque oferece um mapa simbólico do processo humano de separação e encontro. Não é só uma fábula de princesas, é uma narrativa sobre como nos tornamos sujeitos capazes de sair da proteção sem nos perder, reconhecer o medo, experimentar o risco, sofrer perdas e, finalmente, reconstruir vínculos. Ler Rapunzel com olhos psicanalíticos é reconhecer que a história fala tanto da prisão quanto da coragem de cortar o que aprisiona, e de deixar que alguém nos encontre no caminho.
Paz e luz.
1 – Os Irmãos Grimm, Jacob (1785–1863) e Wilhelm Grimm (1786–1859), foram estudiosos, linguistas e folcloristas alemães que se dedicaram a coletar e preservar contos da tradição popular europeia. Entre suas obras mais conhecidas estão Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel e Chapeuzinho Vermelho, reunidas em sua famosa coletânea Contos de Fadas para Crianças e Adultos, publicada no início do século XIX.
2 – Persinette é uma versão francesa do século XVII, escrita por Charlotte-Rose de Caumont de La Force, considerada uma das principais precursoras da história que mais tarde seria adaptada pelos Irmãos Grimm como Rapunzel.
3 – Petrosinella é um conto italiano registrado por Giambattista Basile no século XVII, uma das versões mais antigas do enredo que inspiraria posteriormente a história de Rapunzel.
4 – Sigmund Freud (1856 – 1939) foi o fundador da psicanálise. Desenvolveu uma teoria inovadora sobre o funcionamento da mente humana, destacando o papel do inconsciente, dos desejos reprimidos e dos conflitos psíquicos na formação da personalidade e nos sintomas neuróticos. Suas ideias influenciaram profundamente a psicologia, a cultura e a compreensão moderna do sujeito.
5 – As leituras bettelheimianas referem-se às interpretações do psicanalista Bruno Bettelheim, autor de “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, obra em que analisa o papel simbólico e emocional dessas narrativas no desenvolvimento psíquico infantil.




