Já parou para pensar por que certas pessoas parecem ter o dom de nos tirar do sério, enquanto outras nos trazem uma calma que nem sabíamos que precisava? E por que, às vezes, mesmo mudando de parceiro ou de ciclo de amizades, a gente se vê repetindo os mesmos conflitos, as mesmas frustrações? A vida a dois, as relações familiares, as amizades, até mesmo as interações no trabalho, todas elas são palcos onde encenamos, muitas vezes sem perceber, peças que foram escritas lá atrás, no nosso mundo interno mais profundo. É como se cada pessoa que entra na nossa vida segurasse um espelho, e nesse espelho, em vez de vermos apenas o outro, enxergássemos, refletidas, partes de nós mesmos que estão escondidas. Partes que, talvez, a gente nem saiba que existem ou prefere não encarar.
A psicanálise, essa jornada de mergulho na alma humana, nos mostra que a maior parte do que somos e sentimos reside no inconsciente. Pense na nossa mente como um vasto oceano. A superfície, visível e consciente, é onde navegamos no dia a dia, tomando decisões racionais, interagindo com o mundo de forma aparente. Mas lá embaixo, nas profundezas, está o inconsciente, um universo imenso, cheio de memórias, desejos reprimidos, medos ancestrais, traumas esquecidos e padrões de comportamento que se instalaram muito cedo na nossa história. É esse universo submerso que, sem darmos conta, dita muitas das nossas reações, escolhas e, claro, a forma como nos conectamos ou nos desencontramos com os outros.
Dentro desse oceano inconsciente, dois movimentos são especialmente poderosos e atuam como verdadeiros arquitetos das nossas relações: a projeção e a idealização. A projeção é um mecanismo de defesa, uma espécie de cola psíquica. Funciona assim: algo em mim me incomoda, algo que não aceito ou não reconheço como meu. Para não lidar com esse incômodo interno, eu o jogo no outro. Passo a ver no outro aquela característica, aquele defeito, aquele sentimento que, na verdade, é meu. Sabe aquela crítica ferrenha que você faz a alguém por algo que, no fundo, você também faz? Ou aquela raiva desproporcional que sente de uma atitude alheia que, se olhar bem de perto, toca numa ferida sua? Isso é projeção em ação. O outro vira a tela onde projetamos nossos conteúdos internos não resolvidos.
A idealização, por outro lado, é a tendência de enxergar o outro ou a relação de forma exageradamente positiva, atribuindo qualidades que ele talvez não possua na totalidade, ou ignorando completamente seus aspectos menos agradáveis. É muito comum no início dos relacionamentos amorosos, quando a paixão nos coloca uma lente cor-de-rosa. Vemos o parceiro como a pessoa perfeita, o príncipe ou a princesa encantada que vai preencher todos os nossos vazios e realizar todos os nossos sonhos. Projetamos no outro a imagem do ideal que construímos. Essa idealização excessiva, embora traga uma euforia inicial, é perigosa, pois nos impede de ver o outro como ele realmente é, um ser humano complexo, com luzes e sombras. E a queda, quando a realidade se impõe, costuma ser dolorosa.
Essas danças inconscientes, a projeção que distorce a imagem do outro e a idealização que constrói castelos na areia, não se limitam aos romances. Elas se manifestam nas amizades, quando idealizamos o amigo perfeito que nunca falha, nas relações familiares quando projetamos nos pais ou filhos expectativas que não cabem a eles, e até no ambiente profissional. E o mais intrigante é como, por causa delas e de outros padrões inconscientes, acabamos, sem querer, repetindo as mesmas histórias. Atraímos parceiros com características semelhantes às de figuras parentais com as quais tivemos conflitos, ou nos envolvemos em amizades onde revivemos dinâmicas de rejeição que experimentamos na infância. O inconsciente busca, na repetição, uma chance de elaborar o que ficou mal resolvido, mas, sem a devida consciência, apenas reencenamos o drama.
Perceber esses padrões repetitivos, notar as projeções que fazemos e as idealizações que criamos é o primeiro passo para a mudança. E é aqui que a psicanálise se revela uma aliada fundamental. A terapia psicanalítica é esse mergulho guiado no oceano inconsciente. No setting terapêutico, com a escuta atenta e qualificada do analista, começamos a desvendar os fios que tecem nossas repetições, a identificar as projeções que nos impedem de ver o outro e a nós mesmos com clareza, e a compreender as origens das nossas idealizações. É um processo de autoconhecimento profundo, por vezes desafiador, pois implica em encarar nossas sombras, nossos medos e nossas responsabilidades nas dinâmicas relacionais.
Ao trazer à luz da consciência o que estava submerso, ganhamos a liberdade de escolher. Deixamos de ser reféns de padrões inconscientes e passamos a ter a possibilidade de construir relações mais autênticas, baseadas na realidade e no respeito à individualidade do outro e à nossa própria. A psicanálise não oferece fórmulas mágicas para relacionamentos perfeitos, mas sim a oportunidade de nos tornarmos pessoas mais inteiras, conscientes e capazes de amar e ser amado de forma mais genuína. É um convite a usar os espelhos dos relacionamentos não para nos perdermos em reflexos distorcidos, mas para nos encontrarmos, nos curarmos e, assim, construirmos laços mais fortes, verdadeiros e nutridoros. Que a jornada pelo inconsciente, refletida nos espelhos da alma que são nossos relacionamentos, nos leve a uma vida com mais sentido e conexão.
Paz e Luz.