Ansiedade não é só sobre o futuro: como o passado e suas sombras alimentam o medo.Aproximadamente 5 min. de leitura

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Costumamos dizer que ansiedade é medo do que vem, o frio na barriga antes de uma apresentação, a preocupação que não nos deixa dormir, o “e se…” que repete no silêncio. Isso é verdade, mas é só parte da história. O que muitos textos rápidos deixam de dizer é que a ansiedade frequentemente nasce, ou encontra combustível, em algo que já aconteceu, tais como memórias, feridas antigas, cenas que não foram olhadas e, no jargão junguiano1, partes de nós mantidas na sombra2.

Para a psicanálise clássica, a ansiedade não é um sinal livreiro, é um alarme interno. Freud3 via a ansiedade como uma reação a tensões internas, um aviso de que algo dentro do psiquismo está em conflito, desejos, proibições, lembranças que tentamos empurrar para baixo. Mais do que “apreensão do futuro”, há aqui uma dinâmica de repulsão e retorno, aquilo que foi reprimido retorna como sintoma, e a ansiedade aparece como forma de proteção ou de alerta.

Jung deu outro nome, e outra rima, para essa peça do quebra-cabeça. A sombra reúne traços, impulsos e lembranças que a consciência não acolheu, ela não some só porque fingimos que não existe. Muito pelo contrário, conteúdos sombrios tendem a se manifestar como projeções, ver no outro aquilo que recusamos em nós, e como uma sensação de ameaça difusa. Quando a sombra “bate à porta” da consciência, acompanhada de vergonha ou culpa, a resposta pode ser exatamente aquela angústia inexplicável que chamamos de ansiedade.

As pesquisas sobre trauma mostram que experiências adversas, especialmente na infância, podem deixar marcas profundas na regulação emocional. Quem viveu eventos que o corpo percebeu como perigo tende a desenvolver hiperatividade do sistema de alerta, memórias intrusivas e dificuldade para modular medo e excitação. Em termos práticos lembranças mal processadas do passado continuam a “dar partida” em respostas de medo, mesmo quando a situação atual é segura.

Estudos recentes confirmam esse elo entre componentes traumáticos e sintomas ansiosos na vida adulta. Não é apenas uma conexão teórica, evidências clínicas e pesquisas modernas mostram que traumas mal elaborados contribuem para padrões persistentes de ansiedade, somando fatores biológicos, psicológicos e relacionais, ou seja, enfrentar a ansiedade muitas vezes exige olhar para o que ficou não resolvido no passado.

Como isso se manifesta no dia a dia?

Imagine duas pessoas com o mesmo “medo do futuro”, uma tem uma tendência a ruminar por conta de um temperamento nervoso, a outra revive repetidamente situações em que foi humilhada ou rejeitada quando criança. No primeiro caso, a ansiedade parece nascer de um traço, no segundo, ela é acionada por um passado ainda ativo, resta saber que partes da história ainda exigem ser vistas. Em terapia, é comum que ambos os modos coexistam, uma base biológica ou temperamental que se liga a memórias, narrativas familiares e a conteúdos inconscientes.

E o que ajuda?

Primeiro: traduzir o sintoma. Entender que aquela inquietação pode estar dizendo algo sobre velhas feridas, padrões de autoproteção e projeções.

Segundo: integração, que não é simplesmente “aceitar tudo” sem critério, mas nomear, reconhecer e trabalhar esses conteúdos com guia. Psicoterapia psicanalítica e abordagens que lidam com trauma, desde técnicas de regulação corporal até trabalho com memória e narrativa, costumam ser eficazes porque ajudam a trazer luz à sombra, reduzindo a energia que antes alimentava o alarme ansioso.

Um exemplo hipotético clínico: paciente que vinha há anos “controlando o futuro”, checava portas, revisava emails, planejava excessivamente, acabou percebendo que a raiz vinha de um episódio de abandono na adolescência, nunca falado em casa. Quando essa lembrança ganhou um espaço seguro para ser contada e sentida, a compulsão por prever e controlar diminuiu. Não foi mágica, foi trabalho de trazer para a narrativa o que funcionava como motor inconsciente da ansiedade.

Desta forma enxergar a ansiedade só como medo do futuro é perder metade da cena. O passado, seja em memórias traumáticas, seja em conteúdos sombrios não integrados, alimenta e modela o medo. Trabalhar a ansiedade com profundidade exige, portanto, dois movimentos simultâneos, aprender técnicas de regulação para o presente e fazer um trabalho clínico que olhe o passado, acolha as sombras e as integre à vida consciente. Só assim o alarme interno cede espaço para escolhas menos reativas e mais livres.

Paz e Luz.

 

1 – Junguiano (Carl Gustav Jung (1875-1961)): Psiquiatra suíço e fundador da Psicologia Analítica. Jung expandiu a compreensão do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos e o inconsciente coletivo, e enfatizou a importância dos símbolos e da jornada individual de autoconhecimento.

2 – A teoria da sombra, formulada por Carl Gustav Jung, descreve os aspectos da personalidade que a consciência rejeita ou reprime, impulsos, lembranças e traços que não se encaixam na imagem que temos de nós mesmos. Esses conteúdos, embora ocultos, continuam a influenciar pensamentos, emoções e comportamentos, surgindo muitas vezes em forma de projeções ou sintomas psíquicos, como a ansiedade. Integrar a sombra não significa “eliminar o negativo”, mas reconhecer e dar lugar a essas partes esquecidas, tornando-se mais inteiro e autêntico.

3 – Sigmund Freud (1856-1939) foi o fundador da psicanálise e uma das figuras mais influentes do pensamento moderno. Médico austríaco, revolucionou nossa compreensão da mente humana ao propor a existência do inconsciente e desenvolver conceitos como repressão, transferência e projeção. Sua teoria sobre a estrutura da personalidade (id, ego e superego) e os estágios do desenvolvimento psicossexual transformaram profundamente a psicologia e influenciaram diversos campos do conhecimento, da arte à filosofia.

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