Quem nunca se sentiu um pouco perdido na vida? Aquela sensação de que estamos apenas “cumprindo tabela”, vivendo no piloto automático, esperando o final de semana ou as férias para, quem sabe, sentir um lampejo de sentido. É um vazio que não se preenche com mais consumo, mais dinheiro ou mais “curtidas” nas redes sociais. É um vazio existencial, um grito silencioso da alma que anseia por algo maior, algo que justifique o esforço de levantar da cama todas as manhãs.
Neste ponto, a sabedoria oriental, mais especificamente a filosofia japonesa, nos oferece uma bússola: O Ikigai. A palavra, por si só, já é um convite à introspecção. Ikigai pode ser traduzido, de forma simplificada, como “a razão de viver”, “aquilo que faz a vida valer a pena”. Não se trata de uma meta grandiosa e inatingível, mas sim de um centro, um ponto de equilíbrio onde o nosso “eu” mais profundo encontra o mundo.
O Ikigai é frequentemente representado por um diagrama de Venn com quatro círculos que se interceptam. É nessa intersecção que reside a mágica, o nosso centro de gravidade existencial. Vamos a eles, de forma simples e direta, como uma conversa na sala de terapia:
1- O que você ama (Paixão): São aquelas atividades que fazemos e nem vemos o tempo passar. Onde o prazer é intrínseco, e a energia se renova em vez de se esgotar. É o seu hobby, o seu interesse genuíno, a sua criança interior se manifestando.
2 – No que você é bom (Vocação): Aqui entra o talento, a habilidade, aquilo que você faz com naturalidade e que as pessoas reconhecem. Não precisa ser algo espetacular, pode ser a sua capacidade de ouvir, de organizar, de cozinhar, de escrever. É a sua competência.
3 – Pelo que você pode ser pago (Profissão): A realidade material nos chama. É o seu meio de sustento, a forma como você troca seu tempo e talento por recursos. É o lado prático da vida.
4 – O que o mundo precisa (Missão): Este é o ponto de conexão com o coletivo. Qual é a sua contribuição? O que você pode oferecer que alivia a dor, resolve um problema ou simplesmente torna a vida de alguém melhor? É o seu legado, por menor que seja.
O Ikigai não é apenas a sua profissão. É a intersecção perfeita desses quatro elementos. Se você só tem Paixão e Vocação, mas não é pago por isso, você tem um Hobby, e talvez um problema financeiro. Se você é bom e é pago, mas não ama o que faz, você tem um Emprego e talvez um problema de alma. Se você ama e o mundo precisa, mas não é bom nisso, você tem uma Missão Incompleta e talvez frustração.
A psicanálise, com sua lente profunda sobre o inconsciente, nos ajuda a entender por que essa busca pelo Ikigai é tão vital. O vazio existencial que mencionei no início é, muitas vezes, um sintoma da desconexão com o nosso verdadeiro desejo.
Freud1 nos ensinou que somos movidos por pulsões, e Jung2, que somos impulsionados por um processo de individuação, a busca por nos tornarmos quem realmente somos. O Ikigai, nesse sentido, é a manifestação consciente e prática desse processo. É quando o inconsciente, o desejo mais autêntico, encontra uma forma de se expressar no mundo de maneira útil e recompensadora.
Quando encontramos nosso Ikigai, a alegria de viver (o gai) não é um evento esporádico, mas um estado de fluxo, uma satisfação profunda que vem do alinhamento. É a sensação de que a sua vida, com todos os seus desafios, está sendo bem vivida, porque você está no seu centro.
Como Encontrar o Seu Centro?
Não existe uma fórmula mágica, mas sim um caminho de autoconhecimento.
- Olhe para o passado: O que você amava fazer quando criança, antes das pressões sociais? Onde estava o seu prazer espontâneo?
- Preste atenção ao “Fluxo”: Em que momentos você se sente totalmente absorvido, perdendo a noção do tempo? Essa é uma pista poderosa da sua Paixão e Vocação.
- Pergunte aos outros: No que as pessoas dizem que você é bom? Às vezes, nosso talento é tão natural que o consideramos trivial, mas para os outros, é um dom.
- Conecte-se com a dor do mundo: Qual causa te toca profundamente? O que você gostaria de ver diferente? Essa é a porta de entrada para a sua Missão.
Encontrar o Ikigai é um ato de coragem. É despir-se das expectativas alheias e abraçar a complexidade de quem você é. É entender que a sua razão de ser não está lá fora, esperando para ser descoberta, mas sim aqui dentro, esperando para ser vivida. E quando você vive a sua razão, o trabalho deixa de ser um fardo e se torna a expressão mais pura da sua alegria de ser. É mais que um trabalho; é a sua vida, plenamente.
Paz e luz.
1 – Sigmund Freud (1856-1939) foi o fundador da psicanálise e uma das figuras mais influentes do pensamento moderno. Médico austríaco, revolucionou nossa compreensão da mente humana ao propor a existência do inconsciente e desenvolver conceitos como repressão, transferência e projeção. Sua teoria sobre a estrutura da personalidade (id, ego e superego) e os estágios do desenvolvimento psicossexual transformaram profundamente a psicologia e influenciaram diversos campos do conhecimento, da arte à filosofia.
2 – Carl Gustav Jung (1875-1961): Psiquiatra suíço e fundador da Psicologia Analítica. Jung expandiu a compreensão do inconsciente, introduzindo conceitos como arquétipos e o inconsciente coletivo, e enfatizou a importância dos símbolos e da jornada individual de autoconhecimento.




